“Eu sinceramente acho que o Exército está precisando fazer terapia, porque não admite seus problemas e, sem isso, nunca serão corrigidos

Ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), o cadete logo aprende: “militar não mente”. No pátio de formatura da tropa, lê-se em letras garrafais acima do palanque das autoridades: “Ser cadete é cultuar a verdade, a lealdade, a probidade e a responsabilidade”, código de honra dos cadetes. O site da AMAN explica que “o cadete deve primar pela verdade em qualquer situação, sendo honesto consigo mesmo e com a Nação”. No Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), o Anexo I (Relações de Transgressões), traz, como número 1: “faltar à verdade ou omitir deliberadamente informações.
Parece, no entanto, que esse ensinamento é esquecido depois que o cadete se torna oficial, cruzando o portão da Academia Brasil afora. “Se o cadete aprende a cultuar a verdade, o oficial é ensinado a defender a imagem do Exército a qualquer custo, mesmo que precise omitir informações e até mesmo mentir para a imprensa. E o pior é que a mentira ganha ares de lealdade ao Exército, sendo bem-vista pelos colegas e superiores” – revela Pierrotti. O coronel da reserva conta que foram implementadas instruções de media training na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), para capitães, e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), para oficiais superiores. Entre as atividades escolares, os militares redigem releases, notas à imprensa e participam de simulações de coletivas. Respostas como “caso isolado” e “o Exército Brasileiro não compactua com condutas dessa natureza” somam pontos para os alunos. O rol de respostas prontas (chamadas de “carimbos”) é amplo para ser usado ao sabor dos ventos: “foram abertas investigações”; “se as acusações ficarem comprovadas, os responsáveis serão punidos”, e por aí vai.
“O Exército Brasileiro é muito cioso com o culto às tradições. E, se tem uma tradição que acompanha o Exército há muito tempo, é a mitomania, essa compulsão em mentir” – ironiza Pierrotti. “Os militares mentem para ‘proteger a imagem’ da instituição, mas não percebem que, ao fazê-lo, acabam expondo-a muito mais” – alerta o coronel da reserva e cita exemplos. “Durante a Ditadura Militar, a produção de mentiras foi farta. Vejam a versão do Exército para a morte do Vladimir Herzog com aquela foto grotesca de suicídio no DOI-CODI; as investigações falsas para justificar o desaparecimento do Rubens Paiva; ou o inquérito policial militar sobre a bomba do Riocentro” – aponta Pierrotti. Todas foram desmascaradas pela imprensa, apesar da resistência dos fardados.
Por falar em resistência dos fardados, a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Presidente Dilma Rousseff em 2011 para esclarecer crimes perpetrados pelos agentes da repressão durante a Ditadura Militar, também sofreu oposição ferrenha dos milicos. Diziam eles que era “revanchismo da esquerda”, que todos já haviam sido anistiados e que, caso os militares fossem investigados, também o deveriam ser os militantes da esquerda. Esquecem os militares, com indisfarçável conveniência, que houve um grande desequilíbrio nessa anistia. Os agentes da repressão não sofreram qualquer tipo de sanção, continuaram suas vidas tranquilamente, desfrutando de suas privilegiadas aposentadorias. Alguns ainda foram recompensados pelos crimes que cometeram, com promoções e aumento dos proventos, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, promovido quatro postos acima, a marechal, pela luta na “guerra contra o comunismo”, pensão que ainda é paga às suas duas filhas. Do outro lado, temos, por exemplo, o jornalista Vladimir Herzog, que, recentemente, recebeu anistia política, cinquenta anos depois de ser torturado e morto pelos agentes da repressão no DOI-CODI que Ustra comandou. Somente agora, em 2025, sua viúva obteve o direito a uma pensão pela morte violenta do marido. Qualquer tentativa, portanto, de assemelhar a situação dos agentes da repressão (premiados) e dos opositores da ditadura (perseguidos, exilados, torturados e mortos) não encontra a menor razoabilidade, contraria o senso de justiça e de humanidade. Mas os milicos não desistem…
O Clube Militar, em parceria com o Clube Naval e o Clube Aeronáutico, resolveu convidar seus associados e simpatizantes para um almoço em comemoração aos 61 anos do que eles chamam de “Movimento Democrático de 31 de Março de 1964”. Substituir “golpe militar” por “movimento democrático”, “ditadura militar” por “regime militar”, enfim, usar palavras para falsear a história é outro estratagema mentiroso dos militares. E para quem pensa que a mitomania é coisa do pessoal do pijama (militares da reserva e reformados), o que dizer da subserviência cega do Exército Brasileiro ao governo do ex-capitão, contribuindo para o descrédito das urnas eletrônicas, com relatórios dúbios?
“Se os comandantes militares tivessem uma postura mais ética e comprometida com a verdade, a página da Ditadura aí sim teria sido virada. Mas como virar a página que os brasileiros ainda não conseguiram ler, borrada por esse transtorno incontrolável e duradouro do Exército em mentir?” – indaga Pierrotti. E completa: “No projeto do simulador de apoio de fogo, de que participei, foi a mesma coisa. Até hoje o Exército diz que o equipamento traz muitas vantagens e que estaria funcionando perfeitamente, argumentos que, aliás, respaldaram a decisão dos ministros do TCU para arquivar o caso. Mas isso é uma grande mentira, e eu posso provar com documentos do próprio Exército que apontam que o simulador não está funcionando corretamente”. Por fim, conclui: “Como podemos constatar, a mitomania está entranhada no Exército Brasileiro.
Rubens Pierrotti Jr., coronel da reserva, advogado e escritor, lança o romance de autoficção “Diários da Caserna: Dossiê Smart – a história que o Exército quer riscar” (Ed. Labrador, 2024),